Espelho, espelho nosso
 



Espelho, espelho nosso

por Rubem Penz

Você já viu, todos vimos, está em quase todas as obras policiais literárias, cinematográficas ou televisivas: nas tradicionais salas de interrogatório há um grande espelho que, na verdade, é uma janela. Ou seja, é uma janela com o vidro espelhado. O depoente se vê e sabe que atrás de sua imagem refletida, provavelmente, alguém o observa. Então, desconfia, teme, entra desespero.

Conheci uma janela assim já na infância. Em tempo: não fui preso ou interrogado. Acontece que o pai colocou uma porta-janela com vidro espelhado na casa de praia – e ela está lá, até hoje. E, ao debater com o ilustre patrono da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre Jeferson Tenório sobre o tema “O avesso do espelho”, imediatamente lembrei deste tipo de janela para quando a crônica é escrita em primeira pessoa. Ainda mais que sou fã da definição de crônica como uma janela, obra do imortal Scliar.

Funciona desta forma: o cronista fala de si, do que vê, sente ou reconhece, quase como se estivesse descrevendo um reflexo seu. Depõe, por assim dizer. Confessa ou denuncia, acusa ou se defende. E, por estar tão familiarizado com essa imagem, tão imerso na linguagem proposta pelo estilo, esquece ser este vidro um espelho falso, uma janela. Ou melhor, precisa esquecer, sob o risco de compor-se de modo artificial (pensando demais no leitor, desconfiado de quem espreita atrás da leitura). E o leitor, ah, enquanto ele não aparece em um comentário, é completamente invisível. Ao escritor resta tão somente a suposição de que alguém ali esteja, na esperança de o que diz ter alguma serventia, faça algum sentido.

O mais interessante na metáfora da janela espelhada é tudo ser uma questão de luz. Nestes vidros, está oculto o lado escuro, está refletido onde há luminosidade. Portanto, o cronista pode manejar sua visibilidade jogando o foco para longe de si, para uma paisagem além do ego. Sumir, dificilmente some, ainda que atenue bastante a intimidade exposta. Deve agir assim? Sim ou não, depende de cada crônica. Para umas, misturar-se com a paisagem é o melhor, para outras desenhar seus próprios contornos com clareza é o necessário. Só o que não pode é desconfiar, temer ou se desesperar. Ninguém o forçou a entrar na sala de depoimentos. Está ali por escolha pessoal.

 

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