Em todas as temporadas de férias, sejam elas na praia, na piscina, no campo ou no asfalto quente, obrigatórias listas com sugestões de leitura espalham-se pelos veÃculos de comunicação e nas redes sociais. Livros agradáveis, em sua maioria, uns dentro outros fora dos “10 mais”, afinal é um perÃodo para esquecer um pouco do atribulado cotidiano, da sutileza dos compromissos e da fúria das obrigações e, à s vezes, contar com sugestões facilita bastante as escolhas.
Estranho a essa bem-intencionada orientação – no mais das vezes –, mantenho o hábito da releitura (elevada à potência!), reservando os momentos em que as ondas distraem à beira do oceano para, com a janela aberta, sentir a brisa morna, abstrair das realidades polÃtica e econômica que, apesar do pavor que instauram, ao mesmo tempo parecem uma sucessão de piadas de mau gosto que o amigo que não sabe contar piadas nos obriga a ouvir e a gente ri para não perder o amigo e a piada. Na verdade, ri pra não chorar.
Como não gosto de listas – embora reconheça a necessidade e tenha as minhas: de compras, de possibilidades, do que fazer e do que não repetir, e de livros também –, nestes dias vagais me atenho por algumas horas a um autor, um poeta um tanto mais sinistro que as nuvens das tempestades deste verão e muito, muito mais melancólico do que o olhar que se perde à beira-mar, enquanto se deixa de lado, por marÃtimos instantes, a distopia do século XXI
Sobre esta poesia que me impacta
Por vezes, penso e afirmo que escrevo um único poema desde o primeiro verso que arrisquei, desde certo livro de poesias que li e que marcou minha adolescência. Como não lembro muito claramente de minha infância, transformo em ficção este primeiro contato com a literatura e resgato um dos primeiros autores que fez sentido: Augusto dos Anjos; lembro das leituras inaugurais, feita em imprecisa biblioteca; releio os poemas copiados em um caderno da marca Salesiano, de capa azul e preta, que ainda guardo.
O primeiro poema transcrito para o caderno, em letra ainda legÃvel, é “O Morcego”.
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela Ãgneo e escaldante molho.
Não tem como a memória não ser ativada e o poema vivido. Na casa onde morei parte de minha infância e a pré-adolescência, em Cruz Alta, consigo lembrar a frequente presença desse misterioso mamÃfero voador. Assustávamo-nos com ela, naquelas noites quentes em que as janelas obrigatoriamente ficavam escancaradas nas paredes de pé direito alto.
Nunca procurei evidências da escrita de Augusto em meus escritos, mas subterraneamente ele está presente, pois percebi que desde sempre “Rugia nos meus centros cerebrais / A multidão dos séculos futuros” (“Realização da humanidade futura”); quando, sozinho, me perguntava, sem ninguém ao meu lado para me responder, “De onde ela vem?! De que matéria bruta / Vem essa luz que sobre as nebulosas / Cai de incógnitas criptas misteriosas / Como as estalactites duma gruta?!” (“A ideia”).
O poeta paraibano, nascido em 20 de abril de 1884, despertou em mim as primeiras noções da força e do mistério da poesia. Embora nem sempre entendesse ou tivesse noção das influências cientÃficas que ele apresentava em seus versos, encantou-me a “facilidade” com que ele alinhava os termos ligados à s ciências com a descrição de uma existência corriqueira – assim intuÃa seus poemas, “Como um fantasma que se refugia / Na solidão da natureza morta” (“Solitário”); o cientificismo, vim a saber mais tarde, não ficou restrito ao direito e à filosofia, mas foi intensamente utilizado pelo romantismo literário.
Depois dele, acrescentei outros autores às minhas descobertas, uns mais filosóficos, outros mais prosaicos. Depois, muitos mais, cerebrais e vanguardistas, malemolentes e tropicalistas. Mas, aqui e agora, penso que nunca me refiz do impacto que a poesia de Augusto dos Anjos provocou. Naquele tempo, jovem leitor procurando descobrir as vozes poéticas por instinto e afinidades – temáticas e de forma – dei sequência às descobertas e, com diferentes livros em mãos, sempre foi como se as possibilidades de imaginar o mundo não tivessem se esgotado. As edições do livro de Augusto, posteriormente adquiridas, repousam esquecidas na prateleira a maior parte do ano; vez ou outra, elas “pedem” para serem relidas sem razão aparente. Como agora.
Ora, toda hora é hora
De vez em quando, então, releio Eu & Outras poesias, edição da Civilização Brasileira/Livraria Itatiaia, da coleção Poetas de Sempre, de 1982. O volume tem o fac-sÃmile das capas das edições de 1912 e de 1929, esta em sua 5ª tiragem, editada originalmente pela Companhia Editora Nacional, com texto e nota do professor Antônio Houaiss, correspondente à 30ª edição da obra. Na época, confesso que pouco me interessou o que Houaiss tinha a dizer sobre o livro; me interessava, sim, o que o poeta tinha a dizer.
E hoje retorno ao volume e à s anotações feitas a lápis ao lado dos poemas. Palavras que fui conhecendo e descobrindo o significado em velhos dicionários, conceitos que fui absorvendo instintivamente. E que foram ampliando minhas perspectivas sensoriais quando vi a poesia de Augusto ser transportada para outras manifestações. Em um recorte de jornal dentro do caderno, matéria sobre o espetáculo de dança Senhor dos Anjos (“cuja dubiedade remete aos demônios pessoais do escritor”), levado aos palcos em 2001 pelo bailarino e coreógrafo Sandro Borelli. E reencontro “Budismo Moderno”, que Arnaldo Antunes gravou no CD Ninguém (1995) – “Mas o agregado abstrato das saudades / Fique batendo nas perpétuas grades / Do último verso que eu fizer no mundo”; e, logo adiante, aquele que talvez seja o mais conhecido poema de Augusto, “Versos Ãntimos” (tanto quanto “Psicologia de um vencido”).
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Como toda a obra de Augusto, o poema é de uma declaração pessimista schopenhaueriana sem tirar nem pôr: viver é perturbador; não tem como não tomar consciência do engano com o passar do tempo ou com o que acontece no dia a dia. Tudo que é bom dura pouco, até mesmo o cigarro – e incomoda a impertinência do poeta, que chama a atenção do leitor para as alterações da personalidade do ser humano: “Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera”; “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Lembra a pesquisadora Maria OlÃvia Garcia Ribeiro de Arruda, em O lamento dos oprimidos em Augusto dos Anjos, que o poeta fez uso da “metáfora da decomposição” assim como Antero de Quental (1842-1891), Guerra Junqueiro (1850-1923) e Fernando Pessoa (1888-1935), “para mostrar a podridão da sociedade da época, o choque da modernidade e a não aceitação dos novos valores em ascensão a partir da República, valores estes que faziam parceria eterna com o capitalismo e que ficariam cada vez mais desumanos e devastadores da parte mais fraca da humanidade, assim como dos homens virtuosos” (2009, p. 125). Aliás, um cenário bastante atual. Neste soneto, como em Pessoa, é possÃvel perceber a lucidez crÃtica e a crença na arte, como mostra Maria OlÃvia (p. 261), que, por força e obra de dissimuladas estratégias, querem que deixemos de acreditar e de exercer.
As transcrições em meu caderno chegam ao fim. O poema? O póstumo “Gozo insatisfeito”. Nestes tempos de bandeiras polÃticas sexuais restritivas contrapondo-se ao pleno reconhecimento do corpo e das liberdades, mais do que atual, é pertinente:
Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o cÃrculo infinito.
Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciedade desse gozo!
Por ora, termino a breve releitura de Augusto, e encerro com o terceto final de “O Morcego”: A Consciência Humana é este morcego! / Por mais que a gente faça, à noite, ele entra / Imperceptivelmente em nosso quarto!”. E termino sem fazer lista alguma de sugestões para os leitores, nem proponho desafios literários, afinal, cada um sabe da sua demanda de espÃrito, da necessidade de viver a experiência do autoconhecimento – que pode não ser pela poesia.