O estranhamento abre as portas para um universo instigante e fora do comum. Originária do grego, a palavra significa "estar fora de", "não pertencer", e revela a essência de pessoas singulares que desafiam padrões. Também em latim, "alien" refere-se à alienação, um estado de loucura por ser diferente. Na teoria literária, o termo foi citado em 1917 pelo escritor Viktor Chklovski dado o impacto que uma obra pode provocar no leitor ao sair das convenções.
Para a sociedade, os estranhos são vistos como anormais, excluídos, rejeitados. Contudo, para a literatura, eles são valiosos. Um bom escritor se sobressai pelos desvios, pelas transgressões e margens, escapando do óbvio ao criar personagens.
Conversamos com autores que já lançaram livros e participaram de coletâneas pela Editora Metamorfose para abordar o tema. São eles: Emilly Garcia, colunista para o site Escrita Criativa; Jonattan Castelli, que lançou em 2023 seu primeiro livro individual, Olhos Lilases, e Magda Souza, autora de Lá Todos Continuavam Vivos, Formas de Existir e Irados na Tábua.
Jonattan esclarece que o primeiro ponto para usar a técnica é partir do comum e colocá-lo em um novo prisma, criar afastamento das coisas e refletir sobre a percepção do observador como se estivesse encarando algo pela primeira vez. A partir daí, pode-se descrever os fenômenos por essa lente absurda da novidade, como se não estivesse habituado com algo banal.
"Pegue uma obra artística famosa, e esqueça a teoria e o contexto por trás dela; encare-a como ela é, sem sua camada de significado, e repare como pode ser estranha e absurda. O Cristo Redentor ou a Estátua da Liberdade, se descritos simplesmente como um homem de pedra, usando uma túnica e de braços abertos, enquanto encara a cidade; ou uma mulher de coroa pontiaguda, erguendo uma tocha, um tanto ameaçadora, assumem um novo grau de estranheza e subjetividade. Costumes banalizados da nossa sociabilidade também podem ser estranhos, como um cumprimento ou as roupas que os noivos usam no casamento", exemplifica.
Emilly destaca que é importante saber aonde se quer chegar: "Algo que aprendi nas oficinas do Metamorfose e que sempre tento colocar em prática é a técnica do mostrar mais e contar menos. Acho que isso ajuda a criar a atmosfera desejada e a despertar sensações no leitor. A escolha do narrador e as figuras de linguagem também podem ser ótimos recursos".
Os escritores entrevistados citaram referências literárias que os inspiraram no uso do estranhamento. Jonattan tem como principal referência o economista e sociólogo estadunidense Thorstein Veblen, especialmente sua obra "A Teoria da Classe Ociosa". "Veblen é quem mais me provoca em assumir uma posição sobre os fatos e costumes sociais". Ele também ressalta as obras de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft e Ursula Le Guin. Além desses cabe citar os dois exemplos mais notórios, Franz Kafka e Albert Camus, o primeiro em toda sua obra e o segundo, principalmente, em "O estrangeiro".
Magda gosta de exercitar esse olhar aguçado e muitas vezes, acompanhado de senso de humor para abordar um tema: "Lembro-me da surpresa quando li o livro do Julio Cortázar ? Histórias de Cronópios e de Famas e descobri que era possível escrever daquela forma". Ela também cita as obras de Gabriel Garcia Márquez, "Os funerais da mamãe grande", Ignácio de Loyola Brandão, "Não verás país nenhum", Urbano Tavares Rodrigues, "A vaga de calor" e Álvarez de Azevedo, "Noite na taverna", como influenciadoras do seu trabalho.
Emilly cita
"O gato preto", de Edgar Allan Poe, como referência. "Além disso, gosto muito de ler distopias, ficção científica e suspense", afirma.
O estranhamento pode contribuir para o desenvolvimento da trama e dos personagens. Magda ressalta que esse recurso pode ser um fator de virada, mas tem que haver um acordo prévio com o leitor. Numa história linear ele pode servir para dar uma quebra na narrativa, através da proposição de outro olhar para uma cena ou situação.
Entretanto, é importante que o estranhamento não atrapalhe a clareza, devendo-se usar o recurso com parcimônia. "O ideal é guardá-lo para pontos chave. Talvez aplicá-lo para a percepção das personagens de forma mais subjetiva, ao invés de usá-lo de forma desmedida, em qualquer cena. A menos que se pretenda estabelecer uma atmosfera baseada no estranhamento. Neste caso, descrever a superfície e não seu significado possibilita gerar o efeito desejado, mesmo com um pouco de perda de clareza", explica Jonattan.
O estranhamento é uma ferramenta poderosa que pode ser usada para criar obras inovadoras e impactantes. Que tal utilizá-lo seus textos? Jonattan nos convida a "observar as coisas com os olhos de uma criança ou de um estrangeiro que se choca pela primeira vez com a nossa realidade e percebe os absurdos". Emilly acredita na leitura crítica e na prática, sempre aos olhos de um leitor beta para saber se a narrativa funciona. Magda ressalta a importância da observação, o olhar perspicaz de uma realidade.