Antes mesmo da palavra escrita a humanidade tem o hábito de registrar-se. Ao longo do processo civilizatório a dupla parede-carvão cedeu espaço para a dobradinha papel-caneta, e essa vem passando o bastão para telas que captam, muitas vezes em tempo real, o dia a dia das pessoas. As tecnologias e o ato do registro podem mudar ao longo dos anos, mas no fundo, a prática de "escrever-se" permanece. Ter um diário no fundo da gaveta ou espalhado pelo mundo virtual, para alguns, é quase uma necessidade.
Os motivos que levam alguém a colecionar seus momentos são variados e, quase sempre, sobrepostos. Pode ser para refletir sobre os acontecimentos cotidianos, aliviar tensões, exercer a criatividade, ajudar na execução de metas, mergulhar em si mesmo ou nenhuma dessas coisas. Em todo o caso, ter um diário é uma experiência poderosa na formação humana e, não raro, algo explorado na literatura.
Foi assim que Anne Frank, a partir de um caderno em branco, presente de aniversário pelos seus treze anos, eternizou-se em anotações do cotidiano. As páginas dedicadas à "Querida Kitty" descortinaram o mundo perverso da guerra com a mesma tinta que revelaram as inseguranças e reflexões de uma adolescente presa com a família no famoso Anexo. O que era um momento íntimo, transformou-se em registro histórico para o mundo todo.
No Brasil, dez anos depois, Carolina de Jesus registrava sua própria guerra contra a fome, em uma prisão a céu aberto. Seus vinte cadernos escritos, revelam uma realidade intransigente contra os que sonham (e lutam) por uma vida digna. Suas palavras rabiscadas dentro do quarto de despejo, iluminam um país que tentamos soterrar e traz para o centro da discussão o marginalizado.
Anne Frank e Carolina de Jesus, usam como ponto de partida a concretude da própria realidade para mostrar a si mesmas e o contexto em que estavam inseridas, transformando seus diários em clássicos da literatura. Tornando-se exemplos da dimensão que a escrita cotidiana pode abarcar. É possível que nenhuma das duas tenha escrito com o intuito de publicar seus mais íntimos pensamentos, mas uma vez que eles vieram a público, a chama se acendeu. Anne não pode ver a si mesma virar livro, Carolina teve a vida mudada após a transformação dos escritos a mão virarem impressos, traduzidos em mais de treze idiomas.
O processo de publicação de diários é algo que precisa ser planejado e estruturado, não só pelo formato da escrita, mas pelas consequências e implicações de fazê-lo. O pai de Anne Frank, único ascendente a sobreviver ao Holocausto, foi quem autorizou a publicação, já no caso de Carolina de Jesus, ela mesma arcou com as repercussões.
Diferente de um diário ficcional, um diário verídico pressupõe, ainda que de um ponto de vista singular, aferição com realidade. As interações não se dão entre personagens, mas gente de carne, osso e sentimentos que, nem sempre compactuam com a representação de si mesmos em páginas alheias. Por exemplo, o descontentamento dos moradores da favela do Canindé para com Carolina de Jesus foi expresso através de excrementos atirados na porta da casa da autora.
Ações jurídicas de calúnia, difamação ou injúria podem render até dois anos de prisão a autores desprevenidos ou irresponsáveis. Em tempos de redes sociais em que as vidas são expostas e as fake news devastam indivíduos, é necessário ressaltar que a publicação de diários tem consequências.
Entretanto, a ideia de ver seus mais sigilosos pensamentos publicados não deve ser escanteada. A magia de se expor sem filtros aproxima o leitor do escritor. A realidade, por mais dura que seja, está bem diante dos nossos olhos e ter coragem para mostrá-la é um ato que merece ser exaltado. Além de registrar-se, é imprescindível que o autor se alie a uma editora séria, com experiência no setor de publicação de diários, para desbravar esse caminho e evitar tropeços. E, quiçá, colocar sua vida e a de todos a sua volta em perspectiva.